Luciane Bernardes
Conforto
Ingressei no corredor, minha mão estreante segurava a da minha avó, ela a apertava para conter a minha respiração ofegante. Meus passos vagarosos deixavam ouvir o coração palpitando até a chegada da sala de aula. No caminho havia uma porta que se abriu para nós. De lá surgiu a merendeira com uma caneca de leite quente na mão, me ofereceu. Aquele cheiro do leite em contato com o alumínio ficou para sempre. Cheiro de colégio grande.
Esperança
No Ano Novo, a mãe nos dizia que era para ficarmos olhando para o céu, porque nele ia passar uma carrocinha com o Ano Novo e outra, se despedindo, carregando o Ano Velho. Na grandeza da infância acreditei que vi o velho e o bebê. Até hoje olho para o céu no Ano Novo, na esperança de contemplar e entender o mistério do tempo.
Felicidade
O segredo da vida eu escutava em forma de canção de ninar, não lembro quem cantava, mas a música vive em mim: Jogue suas mãos para o céu e agradeça se acaso tiver, alguém que você gostaria que, estivesse sempre com você, na rua, na chuva, na fazenda, ou numa casinha de sapê...
Colo
Acordei em um colo desconhecido, o corpo amortecido por cortes e machucados. A moça me olhou e disse: “Tu sofreu um acidente, o carro capotou, tu sabe teu nome?”
Eu sabia o meu nome, o nome dos meus pais e meu endereço. Ainda alertei que meu avô tinha problema no coração não podia receber notícia de repente. Eu tinha seis anos, mas o calor daquele colo eu nunca esqueci, um colo quente, solidário. Hoje eu entendo que há muitos tipos de colo, e todos salvam.
Amargo
Comer sempre foi uma das melhores sensações da minha vida, um dom particular de apreciar uma boa mesa. Truman Capote diz que com o dom, vem sempre o chicote. Pois bem o meu chicote é a balança. A minha infância é cheia de acontecimentos e comemorações, mas comer e gostar de comer é para mim um tabu, e isso só me ocorreu agora, no momento em que eu quero ter uma lembrança de paladar. Fecho os olhos, sinto, escuto, enxergo pela imaginação, mas memória de gosto, não me ocorre nenhuma. Quem sabe porque gosto de tudo, quem sabe porque eu quero esquecer de gostar de tudo. A psicanálise que lute para descobrir o que isso significa.