Flashback


Luciane Bernardes


Em uma daquelas tardes melancólicas e lânguidas Joana fez um chá e foi para a frente da sua estante da biblioteca. O sol se punha no horizonte e compunha um cenário laranja azulado. A vista do seu apartamento era privilegiada. No horizonte o lago Guaíba emoldurava o pôr do sol mais lindo que ela já vira. Pensou nisso e riu, era uma típica Porto Alegrense. Apanhou um livro. Sentou-se de frente a esse visual de tirar o fôlego. Contava 128 dias de quarentena.
Ao sentar deixou cair uma foto. Quando juntou um outro mundo veio a sua memória.
A foto era uma performance imitando a atriz Jennifer Beals, protagonista do filme Flashdance. Sara a havia fotografado nos ensaios do Ballet. Lembrou dos seus dezoito anos. Seus sonhos. Suas metas. E sua maior aventura.
Olhou para a foto, seu corte de cabelo repicado ao estilo de Alex, a personagem do filme. O maiô preto elegantemente compondo seu corpo de curvas simétricas típicos de uma bailarina de dezoito anos. Meias grossas e sapatilhas pretas complementavam o visual. Que foto linda, pensou. Por que eu a escondo?
O motivo era a vergonha do seu passado. Quando fez dezoito anos fugiu de casa. Queria uma vida melhor do que aquela que sua mãe levava à sombra da vida de seu pai. Era uma vida boa. Estudou em boas escolas. Fez ballet clássico desde a primeira infância. Era a segunda filha de uma prole de três meninas. Suas irmãs estavam confortáveis naquela vida de conto de fadas; presas no castelo do rei. Ela queria mais.
Tinha visto que os testes para ser bailarina de um recém-criado programa de uma emissora tinham iniciado. Tudo que ela queria era passar no teste e se mudar para São Paulo. Ter uma vida independente. Ganhar o próprio dinheiro e fugir da mediocridade das horas vividas em família.
Pensou na situação, juntou a mesada, fez silêncio dos planos. Não contou nem mesmo para Sara, sua melhor amiga.
No dia marcado saiu de casa cedo, alegando aula extra na faculdade. Cursava Direito, seu pai era um renomado advogado na cidade. Para ela tinha ficado a missão de seguir os passos do pai. A sua irmã mais velha cursava Medicina.
Mas seus passos queriam ser outros. Dançar era a sua paixão, uma experiência de transcendência. De ausência e presença corporal. Um paradoxo. Nada a fazia mais feliz.
Pegou o ônibus. O coração acelerado aos poucos foi acalmando. Chegaria em São Paulo no dia seguinte, na bagagem, seus livros preferidos e sua roupa de Alex.
Na chegada, cuidou para pegar o papel com o endereço da audição, São Paulo era grande demais, tinha medo de se perder. Pegou um táxi. Lá chegando encontrou uma fila imensa. Nervosa, quis desistir. Pensou que tinha uma vida tão boa. Para que ficar ali esperando um sonho bobo. Refez mentalmente o plano de volta para casa. Mas o lado sonhador fez o contraponto, já estava ali, agora era parar de pensar e esperar. Fazer o que era preciso, ao menos tentar.
Sua vez chegou e ela entrou no camarim, colocou o figurino, refez mentalmente a coreografia. Pensou no ritmo da música e subiu no palco.
First when there’s nothing
But a slow glowing dream
That your fear seems to hide
Deep inside your min
Era a primeira estrofe da música. Pensou no significado, na sua coragem, estava ali. Seguiu a coreografia.
What a feeling
Bein's believing
I can have it all, now
I'm dancing for my life
Take your passion
And make it happen
Pictures come alive
You can dance right through your life
Então era isso, a vida era uma dança. Ela a dançarina. Sentiu-se poderosa naquele flash de tempo.
A audição encerrou, entregaram-lhe um telefone e pediram que ela ligasse no dia seguinte.

Resolveu ligar para casa. A essa altura sua mãe já teria lido a carta que deixou na sua mesa de cabeceira.
A mãe atendeu aflita.
— Filha! Volta para casa! Teu pai vai morrer de desgosto. Não contei para ele ainda. Consegui mentir que tu estava na casa da Sara.
— Mãe! É a minha vida, o meu sonho!
— Tua vida e teu sonho? Como assim? E a minha vida? Tu vai destruir por isso? Sonho de rebolar em cima de um palco para todo o Brasil te ver? Teu pai nunca vai me perdoar, vai dizer que a culpa é minha. Tu é uma egoísta. Sabe o que vai acontecer? Vai virar puta em São Paulo. Acompanhante de luxo. Tanto dinheiro gasto para te educar e tu faz essa traição. É o seguinte te dou mais três dias. Eu disse que tu tinha ido para o interior com a Sara. Menti que a avó dela está morrendo. Se tu não voltar quem vai estar morta é tu. Esquece que tens família!
A mãe desligou o telefone. Fim do diálogo.
Ela pegou a mochila e seguiu para o hotel que havia reservado na avenida Paulista. Chegando lá tomou um banho demorado, deitou naquela cama macia e pegou no sono. Acordou assustada o dia já caia rapidamente. Sentou na cama, refez a memória dos fatos. Tinha pouco tempo para decidir o rumo da sua vida. Trazia pouco dinheiro. Aquele quarto de hotel era caro demais para morar.
Pegou o cartão com o telefone. Sua esperança tinha nome e sobrenome. Sentiu um frio na barriga e se sua mãe estivesse certa? E se tudo fosse apenas um plano leviano de uma garota mimada e cheia de vontades? E se tivesse que virar puta mesmo? Aquilo tinha sido um balde de gelo nos seus sonhos tão lindos de encontrar o amor e a dança em São Paulo.
Resolveu encontrar outro hotel. Um mais barato caso resolvesse ficar mais tempo. Ligou para um no centro de São Paulo. Tinha vaga. Pegou suas coisas, encerrou a conta e foi de táxi até o local do novo hotel. Que de “novo” não tinha nada. A aparência suja e descuidada foi um choque de realidade.
Acomodou-se e resolveu sair para dar uma volta. Na saída sentiu que um homem a seguia. Apressou o passo. Entrou em uma lanchonete, pediu café com leite e pão na chapa.
Ele sentou na mesa ao lado. Puxou uma conversa.
— Você vem de onde?
— Eu te conheço?
— Ah logo vi que que era gaúcha. Bonita desse jeito. Estou à procura de modelos para um teste. Sou um caçador de talentos.
Ela sentiu um calor no rosto. Ficou sem graça. Mas pensou que ele poderia realmente ser alguém que lhe ajudaria. Quem sabe era ajuda divina que tinha pedido.
Aceitou conversar. Uma hora se passou e ele parecia um cara legal; se comunicava bem, tinha um cheiro gostoso e uma conversa solta fluída. Até que ele lhe ofereceu uma bebida. Ela disse que não era acostumada. Mas ele insistiu:
— Você me parece uma mulher decidida, já deve ter mais de vinte anos, o álcool ajuda a dar coragem nas decisões. Só um chopp. Vamos lá, me acompanhe!
— Está bem, um só.
Ela não queria parecer uma caipira. Foram mais de meia dúzia. No final ela estava tonta e ele se ofereceu a levá-la até o hotel. Ela aceitou, não tinha ideia onde estava. Ele pegou dinheiro na sua bolsa e pagou a conta. Subiram para o quarto. Ela não conseguiu reagir, ele a segurava forte, ela mole pela cerveja, mas era uma letargia maior do que a do álcool, pensou. Ele tirou a sua roupa e a colocou de quatro, fez o que queria. Vestiu-se e foi embora.
Ela adormeceu entorpecida por tudo. Acordou a cabeça doía muito o quarto girava. O corpo todo dolorido e sujo. Tentou levantar. Não conseguiu. Dormiu mais algumas horas. Perdeu um pouco a noção do tempo.
Acordou lá pelas seis da manhã do dia seguinte, foi para o chuveiro e ficou lá por um tempo que parou de contar. Chorou litros.
Em seguida vestiu-se pegou a bolsa e não encontrou o seu dinheiro. Ele tinha levado tudo. Ela era uma idiota, caipira de merda que achava que sabia alguma coisa da vida. A mãe podia ter alguma razão.
Achou o cartão do teste. Rasgou em pedacinhos.
Respirou e ligou para a mãe. Chorou e pediu ajuda.
A mãe acionou uma tia que morava em São Paulo. A tia chegou sem perguntas. Pegou suas coisas e um táxi para o aeroporto. Subiu no avião e deu uma olhadinha para trás. Maldita cidade, pensou.
Chegou em casa a mãe lhe esperava com uma mesa farta, cheia de suas comidas preferidas. As irmãs sem entender tanto carinho, ficaram um pouco enciumadas.
Um muro formou-se em torno desse fato. Ela e a mãe nunca conversaram a respeito. Muito menos agora que a mãe estava mergulhada no devaneio do Alzheimer.
Voltou ao pôr do sol. Sentiu dor e melancolia por aquele momento.
Depois de tudo pensou que o que lhe traiu foi a vaidade. Sabia que isso lhe deixava vulnerável. Mas só sabia agora, depois de tantas experiências mal resolvidas. Seu apreço por si mesma lhe cegou. E a vida lhe calou. Mas agora contemplando aquele sol indo embora, manso, bonito, pensou que ainda era tempo de retomar-se. Há muito tempo que se sentia em pedaços. Precisava colar o que faltava e tentar dar um novo sentido as coisas. Ao menos essa reclusão temporária e forçada a tinha ajudado. Mais de trinta anos do fato, será que valia a pena remexer nesse baú?
Levantou e foi até o quarto da mãe. Abriu a porta. A mãe olhou e disse:
— Joana!
— Mãe, que bom que sabes que sou eu. Vê essa foto...

voltar

Luciane Bernardes

E-mail: lukbernardes@gmail.com

Clique aqui para seguir esta escritora


Site desenvolvido pela Editora Metamorfose